Carta a um desconhecido

Caro Cipriano

Permita-me a teimosia de tratá-lo por “caro”, mas por uma questão de educação – e filosofia de vida –, não poderei considerá-lo “inimigo”, apenas pela divergência de ideologias, ideias ou ideais. Mesmo que não partilhe da opinião de que a fé não pode á força impor-se á razão, ou que use um qualquer nome…

Acreditar em Sócrates, quando defende a importância do reconhecimento da ignorância e do diálogo como forma de alcançar a verdade, leva-me a considerar muito seriamente o pensamento de Emmanuel Kant: “Se não tivermos a certeza absoluta de algo, então tenhamos a coragem suficiente para duvidar desse algo.”
Não sendo crente, considero a religião como uma tentativa de impormos a nossa visão sobre Deus a outra pessoa, e jamais aceitaria as contradições de uma ideologia suportada por “dogmas” que me obrigariam a confessar que sendo “Deus” perfeitamente bom, teria ainda assim criado um mundo que inclui dor, injustiça, fome e morte. Provavelmente Deus quisesse que em lugar da aceitação cega de um dogma, houvesse uma vida de procura… onde se eliminasse o que seria notoriamente falso e se
comprovasse o que daí remanescia.

Efectivamente não nos conhecemos, e concedendo-lhe o beneficio da dúvida, acredito que – apesar de deixar transparecer algum fundamentalismo exacerbado, próprio de uma atitude “autista” –, terá sido por mera distracção que tenha considerado como minha pretensão, fazer de um romance, o “evangelho” de uma qualquer doutrina… certamente não seria alicerçada em “inquestionáveis” dogmas teológicos.
Acredito que se sinta incomodado com a obra, provavelmente porque percebeu que seria mais fácil lançar a polémica sobre uma “relação” marital – em que a maioria já acredita –, do que justificar, que o primeiro genocídio europeu teria sido mandatado pela “sua” igreja em nome do “seu Deus”. Se prestar atenção á leitura, o autor faz uma abordagem concisa e bastante objectiva da “Cruzada Albigense”.
Mais de cem mil Cátaros – ou pagãos, segundo a igreja –, terão sido eliminados pela “Sta. Inquisição”, apenas porque prestavam “culto” a Madalena – e não aceitavam intermediários no culto da sua fé … Esta terá sido a parte que – por influência e conveniência da igreja –, terá passado despercebida. Aliás, poucos associarão a “inquisição” ao romance…. Mas a mensagem está presente.

Quanto a leituras – e perdoe-me a ignorância –, ainda não percebi como é que consegue, com “exactidão” e “certezas”, garantir cerca de 2000 anos de história baseado em alguns textos – seleccionados, censurados, expurgados e revistos –, de apenas quatro evangelhos… Terá lido os apócrifos ou evidencia apenas, um “pensamento cativo”?

Pelas minhas leituras – [e terei recuado até onde diz: “…no início era o “caos”, uma informe e confusa massa, mero peso morto, contudo jaziam latentes as sementes das coisas…”, bastante antes do tempo em que Deus era “Mulher”] –, Ireneu, presbítero de Lyon (180dC) – aquele que com os seus seguidores se auto proclamou guardião da única fé verdadeira; o mentor dos [“pensadores correctos”] cristãos ortodoxos; o arquitecto da igreja [“universal”] católica, que refutava como heresias todas as outras concepções –, queixava-se da existência de bastantes mais evangelhos… que recentes descobertas – no Mar Morto e em Nag Hammadi –, vieram confirmar e esclarecer…
“Pistis Sophia” ou “O Trovão: Intelecto Perfeito” serão obras ao nível de “O Livro de Job” ou ao “Cântico dos Cânticos”… noutro estilo a “Divina Comédia”.
“Testemunho da Verdade” a vertente gnóstica ou antítese do “Génesis”.

Quanto á Bíblia – uma colectânea de textos seleccionados por conveniência –, poderemos começar pelo poderoso arcebispo Atanásio de Alexandria – o mesmo que ordenou a purga de todos os livros apócrifos –, e que em 367d.C. compilou uma lista de obras – ratificada em 393 d.C pelo Sínodo da Igreja em Hippo e novamente quatro anos mais tarde pelo Sínodo de Cartago –, do que viria a ser a Bíblia.
Poderemos falar também do fragmento em falta no Evangelho de Marcos – que teria sido propositadamente suprimido –, descoberto em 1958 pelo professor Morton Smith da Universidade de Columbia, num mosteiro perto de Jerusalém.
Ou se preferir poderemos comentar sobre a carta descoberta junto desse mesmo fragmento, endereçada pelo Bispo Clemente de Alexandria a um tal de Teodoro, cujo conteúdo fascinou a comunidade científica pela sua filosofia: “Se o nosso oponente por acaso disser a verdade, devemos negá-la e mentir para o refutar.”
Mas se preferir, poderemos começar pelo Concílio de Niceia onde a burocracia da igreja estaria mais preocupada com a sobrevivência da instituição do que com a fé e as almas dos crentes…e onde a teologia terá sido escrita sob o toque aguçado da espada.

Poderemos “discutir” também o Jesus da história, assim como o Cristo da fé. O rei dos judeus ou o filho do carpinteiro. Bem como todo o esoterismo e misticismo envolvente.
Poderemos também reflectir sobre as vertentes filosóficas á interpretação da frase cuja autoria é atribuída a Jesus: [“…e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará…”]

Caro Cipriano, quanto aos seus ideais, concepções e opções… eu não acho, nem quero achar nada… são um problema seu, são a sua cruz. A única coisa que pretendo – como céptico, indiferente e não praticante –, é alguma lealdade nas interpretações…
Toda a literatura é feita de verdades e de mentiras, separá-las é como tentar dividir a água quente da fria… mas conhecermos as várias tendências é adquirirmos ainda mais conhecimento.

Permita-me apenas terminar com um “fragmento” gnóstico que apesar de ter sido “elaborado” á mais de 2000 anos, continuará actualizado:

Aqueles que se limitam a acreditar na pregação que ouvem, sem se colocarem questões, e aceitam o culto que lhes é apresentado, não apenas se mantêm eles próprios ignorantes mas, “caso encontrem alguém que sinta dúvidas sobre a sua salvação”, agem imediatamente de forma a censurá-lo e silenciá-lo.

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Comentários

Maria João disse…
Olá!

A ressureição de Cristo é uma questão de Fé. Ou sentes ou não sentes. Além disso, esta questão do túmulo é contrariada por vários historiadores. Mesmo que não fosse, a ressureição não se prova. Ou se acredita ou não.

Além disso, continuo a dizer: Jesus deixou-nos um exemplo magnífico de como o amor pode mudar uma sociedade. Como cristã é nisso que acredito. Não quero saber dos erros da Igreja Católica ou de outras religiões ou se se descobre um túmulo. Basta-me o exemplo de Cristo. Como já te disse, Jesus era judeu e não foi por isso que deixou de criticar os judeus. Ia à sinagoga, mas fazia apenas aquilo que era espelho do amor de Deus em palavras e, sobretudo, em acções junto dos que mais precisam. É este exemplo que quero seguir e que faço por seguir todos os dias.

Acredite-se na divindade de Cristo ou não, o exemplo que Ele nos deixou pode ser seguido por qualquer pessoa. Já o foi por muitas pessoas, crentes e não crentes. E com esse exemplo conseguiram salvar muitas vidas e dar mais dignidade a quem é marginalizado na sociedade.

Podes dizer-me que nem todos os crentes seguem este exemplo. É verdade. Mas, ovelhas negras há em todo o lado. Não é por isso que vamos considerar o rebanho um autêntico falhanço.

Um abraço,
Maria João

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